Gonçalo M. Tavares
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“Às vezes escondo-me no corpo e ninguém vê.
As pessoas falam comigo e não notam que eu não falo com elas.
Posso até dizer algumas palavras,
posso até exprimir-me num longo discurso,
mas a verdade é que não falo com elas.
Estou escondido algures no meio do meu corpo.
Enfio-me todo no esófago ou no centro da artéria aorta ou na veia jugular,
e, por vezes, quando estou mais tímido, chego mesmo a esconder-me nos músculos da planta do pé.
Apesar de não saber os nomes destes músculos escondido-me lá muitas vezes.
Alias, é melhor fugirmos para sítios de que desconhecemos o nome: ficamos ainda mais escondidos.
É a minha opinião.
A minha personalidade a refugiar-se inteira no dedo mínimo do pé esquerdo, vejam bem.
Por vezes acontece-me.
O meu Eu alojado no dedo mínimo do pé esquerdo.
Os mais importantes pensamentos concentrados no dedo mínimo do pé esquerdo.
As minhas sensações mais íntimas escondidas no dedo mínimo do pé esquerdo.
Quando me pisam é que é uma desgraça.
Só se tiver a sorte de me pisarem no outro pé.
Quando me pisam o pé mais importante começo a gritar; e começar a gritar é o começo do fim.
Quando gritamos não nos podemos esconder.
O corpo vem todo à pele ver o que se passa.
A pele é como se fosse uma janela.
Quando gritamos de dor, todas as células do corpo vêm à janela, ou seja, à pele, para assistir à procissão.
Mas há muitas células do meu corpo que não concordam totalmente com as minhas ideias.
Obdecem-me porque não têm alternativa, mas nas costas gozam-me e por vezes insultam-me.
Prefiro mesmo assim os insultos.
Os insultos são pequenas pancadas vindas do fundo dos orgãos.
É mais ou menos suportável.
O terrível é quando se põem a rir de mim.
Eu digo:
– Sou um grande acrobata,
e sinto logo algumas células a rirem-se.
As costelas abanam todas.
Os dentes é como se tivessem muito frio.
Os dedos dos pés encolhem-se.
É como se soprasse uma rajada de vento no meio do corpo.
Ainda por cima riem-se de quem as alimenta.
Se isto não é ingratidão, não sei o que é ingratidão.
Células más, um dia ainda vos mato.
O problema é que elas me têm por refém.
É impossível matar as próprias células do corpo sem morrer.
Parecendo que não, esta vida é muito complicada.”
13
“Tenho doenças no corpo de fora e no corpo de dentro.
Quando cuspo para o chão passo as doenças de dentro para fora.
Quando for muito velho o meu corpo e o exterior vão ser quase a mesma coisa.
Quando morrer, eu e o corpo de fora vamos ter a mesma doença.
Isto pelo menos é o que eu penso enquanto estou deste lado.
Morrer é ter a mesma doença que o planeta inteiro.”
15
“É difícil ser inteligente no meio deste corpo.
É braços para um lado,
pernas para o outro.
Os olhos a verem uma data de coisas.
Milhentos ruídos à volta das orelhas.
Depois ainda os cheiros
e pior de tudo: os corpos, os outros corpos!
Uns a meterem nojo,
outros a seduzirem.
É muito difícil ser inteligente com tanta rapariga bonita a passar.
É pedir muito.
O desejo não se desliga como a luz do quarto.
Era bom era, mas não é assim.
Como se pode ser inteligente com as mulheres a insistirem naquele modo sedutor de existir?
É impossível, caros colegas, é impossível!
E depois há mais coisas.
O corpo é um reservatório sem fundo.
Tudo o que é mundo vai lá parar.
Temos um corpo muito cheio.
A movimentação lá de dentro torna-se complicada.
Depois há ainda outras necessidades básicas. Vejamos:
um – urina
dois – fezes.
Estou a dizer é claro, os efeitos visíveis das necessidades
três – alimento
quatro – esperma
Estou a baralhar tudo!
cinco – bebida
seis – saliva
sete – álcool. E o oito já não me recordo.
Enfim, a agitação dentro do corpo é enorme.
Há coisas a quererem sair
e há outras coisas a querem entrar.
Isto nunca pára.
Depois as mulheres sempre a passar, as mulheres!
É muito difícil ser inteligente neste corpo.”