“Jóia e corpo tendem a partilhar o mesmo destino”
“O desenvolvimento das tecnologias digitais e, posteriormente, das biotecnologias requisitou o corpo para novos tipos de interacções com os objectos artificiais ao ponto das fronteiras entre o biológico e tecnológico, o natural e o artificial, o humano e o maquínico se esbaterem progressivamente.” (Bártolo, J. M.) Será a concentração dos médiuns num novo Ser-Dispositivo – o Nómada Digital?!
A proximidade do uso da joalharia ao corpo, incorpora intimidade e convida ao espaço privado, pela interacção física com o objecto, sua colocação no corpo e onde no corpo… Não há áreas para o uso da jóia, houve! A experiência retratada é traduzida num diálogo intimista. A joalharia estendeu o seu vocabulário a novos materiais, novas percepções, integrando experiência ao utilizador resultando num processo interactivo entre o sujeito e o seu corpo, “A razão é muito clara: a existência de um corpo é a condição de possibilidade da existência de uma jóia, o corpo é o espaço onde a jóia se concretiza…” (Bártolo, J. M.) O corpo torna-se interface, é espelho e janela, a adaptabilidade deste reflecte e redefine o corpo, em verdadeiro estado de work in progress.
Wright et al. (2003) faz uma análise da obtenção da experiência em vários layers: pela composição, através das partes que compõem o todo, as suas relações, as opções de acção; pela sensualidade, atribuída pelas qualidades físicas da identidade objectual percepcionadas sensorialmente; pela emoção, englobando a experiência através de sistemas de empatias; e a relação espaço-tempo com a capacidade perceptiva da experiência, mutável em função do espaço público, ou privado. No entanto estas fronteiras estão diluídas, o espaço público tornou-se por via tecnológica em relação privada, através dos vários layers de experiência incorporados no ser-objecto. O designer torna-se autor de uma actividade partilhada.
“Uma jóia não vale tanto pela sua função de uso mas pela sua dimensão simbólica. Como todo o símbolo, a jóia é a presença de uma ausência, algo que está no “lugar de”, uma evocação de qualquer coisa que não está presente, um contracto civil ou um sentimento, a pertença a uma linhagem ou uma memória, um desejo, um clamor, um suplício.” (Bártolo, J. M.)
Dos objectos que se colocam no corpo para os objectos que nascem do corpo, mais os objectos que se colocam no corpo do corpo nascido do corpo. Angiogenetic Body Adornment é exemplo da mutabilidade e da indefinição do limite do ser-corpo-objecto. Será incorporação de objectos no corpo ou da colocação de corpo nos objectos? São seres-objectos que crescem do corpo, dos códigos de ADN, desta possibilidade, que códigos, para além dos simbólicos a joalharia transportará? O ciclo de vida do ser-objecto é programado a priori ou integrado no ciclo de vida do corpo? São efemeridades diferentes para o mesmo corpo, ou o acrescento de corpo define o seu tempo de vida. Todos somos autores, autores do próprio corpo. Neste contexto penso que o tacto é o dispositivo sensorial mais visceral, tocar é ser tocado. Está ainda protegido e seduzido por todos os outros dispositivos sensoriais! Transporta emoções que se reflectem internamente em loops informes pelo devir-orgânico do corpo a vir! O poema "15" de Gonçalo M. Tavares apresenta todo este palco de actuações e seduções.
“Está hoje em vigor uma nova economia de aproveitamento e de reciclagem dos produtos do corpo como matéria de construção do próprio corpo. Para esta tendência contribui, também, a joalharia como se confirma através da análise dos projectos de biojoalharia. Aparentemente, a joalharia não escapa a esta lógica de retroacção, a lógica cibernética por excelência, que acaba sempre por se traduzir ao nível das práticas do corpo e dos discursos do corpo.” (Bártolo, J. M.) Survival Kit é exemplo de biojoalharia, menos preocupada com o adorno, mais interventiva (neste exemplo em concreto).
Através de formas adaptativas, não intrusivas que quando usadas constantemente tornam-se transparentes, fazendo parte do corpo, constata-se que só quando estas são removidas é que a sua presença se torna opaca. Rec Contacts embora metaforicamente torna-se espelho do que sensorialmente é feito e do que tecnologicamente é passível de o ser. Espelha o eu através do outro. Por antítese ao mito de narciso, o outro através do eu. No entanto continua a ser necessária a entrada de um terceiro elemento para desbloquear a sucessão de espelhamentos. Sem qualquer tipo de pretensão de análise literária (ou outra qualquer…) penso que em Mario de Sá-Carneiro este terceiro elemento existia incorporado no próprio, poema “Dispersão” e “7”. Por paradoxo, se estabelecermos um paralelo com a cultura material, inicialmente a transparência foi usada para mostrar o esqueleto, as entranhas do objecto, como que a um corpo lhe retirássemos por sucessão pele, músculos, etc, o que nos mostra que a ubiquidade é acessória. “The desire of transparency is a cultural choice.” (Bolter, J.D.)
Será a anamorfose, o segredo da intrusão do ser-objecto no corpo sem ocupar espaço (a cegueira (espelho) deixa-nos sem noção de espaço, só tempo), será esta uma tentativa de extensão transparente?
Talvez o desejo de transparência seja a procura do ideal / verdadeiro a ideia de que melhor é possível. A procura da autenticidade de emoções, e somos tão mais autênticos quando nos tornamos aquilo que sonhamos! A transparência de um ambiente imaginado, como janela e / ou espelho, é metáfora do real. A espelho / janela da minha fantasia, o meu eu super-herói. A realidade existe porque só é real depois do testemunho de um médium, é o paradoxo da possibilidade de manipulação do real e da sua acreditação, a forma manipuladora são reflexos e sombras subsequentes desse eu.
Transparecer a interface é transparecer o corpo. No limite a transparência é opaca! A transparência no corpo penso, não pode ser operada em sentido ubíquo, ou torna-se monstruosa!…
"Nothing", realização de Vicenzo Natali, 2003
Pela escala, a joalharia com afinidade poderá incorporar as nanotecnologias. Para já a miniaturização (às vezes incompatível com a escala humana) e a mobilidade que lhe está associada, assim como a ubiquidade, são a ponte relacional e automática para a integração da tecnologia digital na joalharia. Corpo-extensão-remediação do corpo – sistema receptor e informador, novo nómada que não se desloca sem a bagagem digital, onde estabelece relações emocionais, estas as quais a joalharia sempre se alimentou. Organizações como a IBM, PHILIPS Design e IDEO são exemplo destas integrações tecnológicas. Os projectos propostos pela IDEO Technojewelry IDEO Ring Phone & GPS Toes e IDEO – Without Tought e-fashion, e só o nome do projecto revela a intencionalidade de o tornar transparente representam esta adaptação, mudando a experiência composicional e espaço-temporal, exploram a tecnologia vestida, penso, com alguma sensualidade e emoção. Que experiência se retira quando estes dispositivos GPS vibram ou se iluminam? Divertimento ou irritação… E a analogia empírica relacionada com a mímica infantil de representação do uso do telefone, agora tornada real…
As fronteiras entre corpos que são em simultâneo modeladores e modelados por estas mesmas fronteiras, necessitam do reconhecimento do intervalo existente entre balizas, que é também corpo. A falta de reconhecimento destes limites, destes intervalos como entidades autónomas traduz transparência. Da ideia de uso de ferramentas mais fáceis, é deixar de as ter, serem integradas no ser-objecto. Este intervalo de espaço entre o corpo e os extra-corpos, esta zona baliza pode ser também ela corpo. Materialidade unitária, dotada pela física de volatilidade e poder de movimento. Deste “pensar o espaço como corpo” (Bártolo, J. M.) aponto como exemplo projecto Mouth Ligth.
“Na minha opinião o “eu” não é um ponto, é um espaço onde confluem relações e onde o sujeito as sintetiza. Este espaço permite heterogeneidades e tem uma forma muito maleável, podendo mudar instantaneamente. Só um espaço assim poderá abarcar um sujeito que é feito de um material heterogéneo (biotécnico) e que está para além do seu limite material, distribuindo-se, espalhando-se acentrada e instantaneamente por um tecido. Esse tecido cuja malha o sujeito constitui, e da qual é constituído, tem uma forma incerta e mutável também.” (Sá, Cristina) Exige ao sujeito uma adaptação constante e imediata das forças e virtudes do ser-objecto, através dos veículos: pele e mente. O poema de Gonçalo M. Tavares “47” mostra a viagem interna ao corpo do corpo. Blister Ring é também uma viagem pela mutabilidade efémera do corpo-objecto. A joalharia como narrativa de continuidade e memória rompe-se, é provocado um corte de identidade através das experiências que joalharia contemporânea propõe. Dotados de uma bateria completa de sentidos, vivemos no espaço e no tempo, nosso desejo era (talvez) viver em espaço sem tempo! Aglutinador de experiências. Não há tempo para amadurecer… quantas vidas se quer viver? O corpo é uma interface, dispositivo informacional, aparelhado de formas para comunicar. O ideal será o que a mente representa, o real o que o corpo apresenta e a interface será a fronteira a cada instante… interface pele, ossos, carne – corpo! “As pure interfaces, they demonstrate that content and form are inseparable” (Bolter, J.D)
"Futurama: Bender’s Big Score", realização de Dwayne Carey-Hill, 2007
“Criamos uma imagem invisível de nós próprios, na imagem heterotópica da web, encontramos a nossa imagem como activos, e essa imagem é heterogénea (múltipla), disseminada, fragmentada e unificável apenas no código-máquina, que tudo compila e agrega, tudo digitaliza e organiza. Este “depósito digital” é criado sempre utilizamos qualquer sistema interactivo que tenha a capacidade de guardar e processar dados (não precisa de estar on-line).” (Sá, Cristina) Vanity Ring mostra um exemplo do nosso depósito digital…Será a nossa importância contemporânea atribuída pelo número de espelhos que possuímos? Ou será simultaneamente este depósito uma fuga ao anonimato contemporâneo?
Quantas janelas temos? Ao mesmo tempo falo ao telemóvel escrevo um e-mail e vou á casa de banho. Até é estranho pensar que agora só estou a fazer uma coisa. Um momento equivale a n experiências. A inteface é um gerador de experiência, pelos dispositivos perceptivos que aparelha. A vida da jóia existe através do corpo apossado, ou da jóia para posse do corpo? “Como sublinham Peter Dormer e R. Turner, a joalharia contemporânea é indissociável desta intenção de tornar a jóia numa interface comunicativa, performativa, dinâmica, que se dá, não apenas a ser usada […] mas, sobretudo, a ser sentida e pensada.” (Bártolo, J. M.) O projecto Light Brooch é reflexo da expressão da comunicação humana através da relação exploratória do tacto. Através da partilha das peças, gestos privados tornam-se públicos. Projectar a interacção entre utilizador e visualizador é projectar para a experiência. A experiência coreografada tem sempre fendas, o pré-definido é (talvez) só a introdução! O corpo é nosso maior processador de histórias. Como qualquer outro programa gera sequências desconhecidas, não previstas, bugs!
O humano é um produtor de informação, um medium por natureza. O ser-objecto gérmen alojado no corpo é sempre com ele que ganha vida. O ecossistema da relação ser-objecto / corpo estará a entrar em desequilíbrio. Duma relação comensal para uma relação de protocooperação até uma relação simbiótica, chegará a uma relação de parasitismo… A (re)construção do corpo por outro corpo é auto-remediação. O devir orgânico ser-objecto do / no corpo que zona deste remedeia? Serão formações genésicas?
“Tenho desejo forte,
E o meu desejo, porque é forte, entra na substância do mundo.”
(Álvaro de Campos)